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Além do fogo: as sequelas que queimaduras deixam na vida de sobreviventes

5 de fevereiro de 2021 | escrito por

Entre janeiro de 2015 e julho de 2020, houve cerca de 86,9 mil atendimentos ambulatoriais e mais de 1 milhão de atendimentos hospitalares só por meio do SUS (Sistema Único de Saúde) para casos de queimadura, segundo dados do Ministério da Saúde.

Quando se trata dessa questão, é comum pensar em fogo ou em acidentes com panela. Tanto que as queimaduras térmicas —provocadas por agentes com calor direto, como água quente, borra de café, chapinha e lareiras— são as mais conhecidas.

Tais casos são, inclusive, os mais comuns no cotidiano, resultando na maior parte das entradas de queimados no Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, localizado na zona leste de São Paulo, que é referência nacional em tratamento de queimaduras.

Dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo apontam que, na instituição, as lesões térmicas por contato, escaldo e calor corresponderam a 68% dos atendimentos em 2018 e 71% deles em 2019.

“Senti um calor e vi tudo laranja”

Foram justamente queimaduras térmicas as que ocorreram com a youtuber , 22, do Rio de Janeiro. Ela teve 40% do corpo queimado em um incidente que ocorreu em 16 de fevereiro de 2018. Naquele dia, a jovem estava em casa com o ex-namorado. Enquanto ela dormia, ele foi fritar nuggets, mas se distraiu e a panela começou a pegar fogo.

Acordada pelos gritos do ex, Lua entrou na cozinha. Sem saber que o utensílio doméstico tinha óleo, a garota pegou a panela, colocou na pia e ligou a torneira. Tudo explodiu. “Não senti dor de imediato. Senti um calor e vi que estava tudo laranja. Foi aí que eu entendi que, ok, estou pegando fogo. No que eu entendi isso, me joguei no chão e comecei a me debater”, recorda.

Após o acidente, a estudante de nutrição só voltou à rotina na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) após cerca de dois meses internada no Hospital Samaritano da Barra. Caminhava das aulas para casa em um calor de 35ºC, usando malha compressiva, além de roupa e guarda-chuva de proteção UV.

Ela conta que, antes das queimaduras, sempre foi uma pessoa diurna: amava tomar sol na praia e ter marquinhas de biquíni. Agora, se preocupa que as cicatrizes tragam maior risco de câncer de pele. “Sou muito neurótica com isso, pois sinto o sol me queimar, nunca senti isso antes”, afirma.

Além disso, sobreviver ao fogo fez a garota se transformar: pintou os cabelos de rosa —cor que combina com suas cicatrizes, segundo ela mesma— e começou uma nova fase, em que relata sua superação aos mais de 623 mil inscritos em seu canal no YouTube.

A superação também incluiu a sua luta contra a depressão, doença que teve por oito anos. “Não conseguia ver beleza em nada, era muito difícil. Depois do acidente, houve uma mudança de perspectiva no sentido de aprender a conviver e aceitar a dor”, diz.

“Soube quanto vale ter as duas mãos e as pernas”

Embora as queimaduras térmicas, como as de Lua, sejam as mais comuns, nem toda vítima de queimadura encostou em fogo. Existem aquelas pessoas que tiveram, de modo isolado, queimaduras elétricas. Isso aconteceu com a secretária Rose Campos, 31, que sobreviveu a uma descarga elétrica de 13.850 volts. Nesse tipo de situação, a física explica que é o fenômeno joule (responsável por liberação de energia) que produz o dano.

Em 7 de outubro de 2017, em um trecho afastado de uma fazenda, no município de São Novo Joaquim (MT), enquanto era eletrocutada, Campos sentiu que estava passando mal e caiu no chão rapidamente. Não houve dor no momento do susto em si (só depois), mas ela quebrou um dente em decorrência da queda, que pareceu ocorrer em câmera lenta.

A descarga elétrica, que resultou em 25% de seu corpo queimado, veio de uma rede de alta tensão e foi conduzida por uma antena de um celular rural, que a mulher segurava na mão. Na hora, não havia quem soubesse dirigir para levá-la ao hospital. No desespero, um rapaz que trabalhava na fazenda conduziu uma caminhonete mesmo sem saber pilotá-la, levando a vítima até o pronto-socorro mais próximo, no município vizinho, de Nova Xavantina.

O trajeto, que levava normalmente em torno de 50 minutos, demorou duas horas. A paciente foi transferida mais tarde para o Instituto Nelson Piccolo, de Goiânia (GO). Ela superou 30 dias de internação na capital de Goiás, usou malha compressiva e passou por uma soma de 19 cirurgias —sendo a mais dolorosa delas a remoção de uma das falanges do segundo dedo do pé direito.

Além disso, hoje a mãe de família tem movimentos debilitados na mão esquerda, mas sente gratidão, pois o membro recebeu uma sentença de amputação que nunca se cumpriu. “Soube quanto vale ter as duas mãos ou só uma, mas também o quanto valem as pernas, pois em determinado momento

precisei ficar 20 dias em uma cadeira de rodas”, comenta Campos. “Com isso, consegui colher os frutos de cada etapa e entendi que o que eu vivo hoje é um presente”, conclui.

“A gente percebe a mudança no olhar das pessoas”

Em 23 de agosto de 2017, Ronaldo Gonçalves, 55, trabalhava em uma mineradora em Crixás, interior de Goiás, quando houve uma explosão em um moinho, que lançou um líquido quente com produtos químicos abrasivos em cima dele. Como consequência, o trabalhador teve graves queimaduras químicas. Como o nome já diz, essas são causadas por componentes químicos, que podem ser ácidos (como o ácido sulfúrico) ou básicos (soda cáustica).

Todavia, além do dano químico, Gonçalves também teve queimaduras térmicas devido à temperatura alta envolvida no equipamento da mineradora. Seu caso é exemplo de que queimados podem ter mais de um tipo de lesão de uma só vez.

Gonçalves relata que não perdeu os sentidos no momento da explosão, mas sentiu dor intensa e viu bolhas grandes aparecendo e se rompendo nos braços, nas mãos e em várias partes do corpo. A mineradora tinha emergencistas a postos e ele foi levado a um pronto-socorro local. Teve 45% do corpo queimado e fez inúmeras cirurgias na capital Goiânia, para onde se mudou permanentemente.

Assim como muitos queimados, como parte de seu tratamento o sobrevivente vestiu uma malha compressiva. Com isso, vieram muitos olhares tortos. “A gente percebe a mudança no olhar das pessoas, é algo que incomoda. Mas no meu caso, pensava: ‘é assim mesmo e vai passar’ e, de fato, passou”, conta Gonçalves, que ressalta ter recebido nos momentos mais difíceis ajuda do filho e da esposa, essa que “fez papel de quatro enfermeiras, 24h por dia”.

Como se define o grau de queimadura?

Queimaduras de primeiro grau atingem somente a camada mais superficial da pele —a epiderme— causando apenas uma reação inflamatória ao excesso de calor. A lesão arde, é avermelhada e cicatriza em 5 a 7 dias. Basta passar creme hidratante para aliviar o ressecamento ou desconforto. Por exemplo, uma queimadura de sol.

Já as queimaduras de segundo grau podem ser de dois tipos:

– superficial: alcança a derme papilar, que é a parte superficial da derme (camada intermediária e mais espessa da pele). Geralmente gera bolhas e há possibilidade de cicatrização natural entre 10 a 14 dias. Exemplo: líquido quente ou uma queimadura de sol “mais séria”, que forma bolha.

– profunda: afeta a derme reticular, a parte mais profunda da derme, ao ponto de sobrar pouca pele para cicatrização. Não forma bolha e tem cor alaranjada, como a de um camarão. Pode provocar cicatrizes, repercussões sistêmicas e requerer até uma cirurgia de raspagem e enxerto. Exemplo: explosão por agentes inflamáveis, como álcool e gasolina

Por último, estão as queimaduras de terceiro grau, que são aquelas que queimam a epiderme, mais a derme papilar e reticular, podendo alcançar também gordura, músculo e a capa que reveste o osso (periósteo).

Geralmente, a vítima precisa passar por uma raspagem e enxerto, podendo haver sequelas sérias, uma vez que não há nenhuma possibilidade de cicatrização natural. Exemplo: choques prolongados de alta voltagem, explosões e incêndios.

Qual queimadura dói mais?

A lesão mais dolorosa não é a queimadura de terceiro grau, pois essa é indolor, conforme explica José Adorno, presidente da SBQ (Sociedade Brasileira de Queimaduras). Ele conta que, nesses casos, não resta mais comunicação com o meio interno, uma vez que toda a pele e todos os receptores de dor são destruídos.

Visto que a queimadura de primeiro grau só arde, a de segundo grau, portanto, é a que costuma doer mais do que os demais casos. Ela expõe as terminações nervosas, pois não atinge a pele por completo. Isso faz a manutenção e troca de curativos ser bem mais dolorosa.

O uso da malha

O uso da malha compressiva, que esteve presente na vida de Ronaldo Gonçalves, Adriana Lua e Rose Campos, serve para garantir a reestruturação celular da pele, evitando desuniformidades na área queimada durante a cicatrização. Feita sob medida, é bem apertada e diminui o aporte sanguíneo, retirando a circulação da derme (camada intermediária da pele).

Segundo Samuel Mandelbaum, dermatologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Taubaté e da Santa Casa de São José dos Campos (SP), tal mecanismo de compressão evita uma reprodução celular desenfreada, que pode originar uma cicatriz hipertrófica ou queloide.

Além disso, como a malha age por compressão contínua, deve ser usada pelo máximo de tempo possível —cerca de 24 horas por dia, para garantir seu efeito. Oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde), pode ser vestida em partes do corpo inteiro (braços, cabeça, rosto) e é indicada sobretudo para queimaduras de segundo e terceiro graus.

Fonte: Uol

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